LLANSOLMÚSICA

Luis Maffei


1. Prelúdio:

        Jorge de Sena não é um nome estranho à literatura de Maria Gabriela Llansol, personagem que é de Um Falcão no punho; Bach tampouco, logo se verá. Sena escreveu “Bach: Variações Goldberg”:

A música é só música, eu sei. Não há
outros termos em que falar dela a não ser que
ela mesma seja menos que si mesma. Mas
o caso é que falar de música em tais termos
é como descrever um quadro em cores e formas e volumes, sem
mostrá-lo ou sem sequer havê-lo visto alguma vez (Sena, 1984: 185).

        Não se pode falar de música sem a atraiçoar, pois a música é, segundo José Miguel Wisnik, “uma linguagem em que se percebe o horizonte de um sentido que no entanto não se discrimina em signos isolados” (Wisnik, 2001: 30): de signos, por outro lado, compõe-se a literatura, e se a literatura quiser “falar”, como salientou Sena, da música, fará com que esta “seja menos que si mesma”. Desse modo, levanta-se a questão: se “A música é só música”, que literatura poderá, ainda que não prescinda de suas peculiaridades (as que fizeram Kieslowski abandonar o cinema, pois, para o cineasta polonês, só a literatura é libertária, só a literatura faz de uma caixa de fósforos mais que uma caixa de fósforos), para além de “falar” de música, fazer música?
        Essa é uma das novidades da obra de Maria Gabriela Llansol, e novidade foi o que viu, nesta literatura, Eduardo Lourenço, ainda em 1979, quando escreveu, adotando as palavras de Ponce de Leon, “Gracias Diós. Hemos visto algo nuevo” (Lourenço, 1994: 283). O texto llansolniano, indefinido, indefinível, explode os limites não apenas dos gêneros literários (o que não seria novidade, pois essa explosão é o que caracteriza, em grande medida, a literatura, pelo menos desde as revoluções modernistas), mas também da própria natureza do fato literário, e um dos explosivos de que se utiliza é fazer música com suas palavras. “A música é só música, eu sei”, e é essa linguagem que será acessada pela ainda nova, décadas após seu surgimento, literatura de Maria Gabriela Llansol.

2. ANDANTE:

        Para começar, algumas diferenças. Refletindo sobre as relações entre as artes, o cineasta russo Andrei Tarkovski, em seu Esculpir o tempo, escreveu:

(...) gostaria de retomar a comparação, ou melhor, o contraste entre literatura e cinema. A única característica comum entre essas formas de arte inteiramente autônomas e independentes é, a meu ver, a maravilhosa liberdade de usar o material como querem. (...) O cinema é a única forma de arte em que o autor pode se considerar como o criador de uma realidade não convencional, literalmente, o criador do seu próprio mundo. (...) Estamos falando sobre os diferentes tipos de relação com a realidade sobre os quais cada forma de arte fundamenta e desenvolve seu sistema específico de convenções. Neste aspecto, coloco o cinema e a música entre as artes imediatas, já que não precisam de linguagem mediadora. Este fator determinante fundamental sublinha o parentesco entre música e cinema e, pelo mesmo motivo, afasta o cinema da literatura, onde tudo é expresso através da linguagem, de um sistema de signos, de hieróglifos (Tarkovski, 1998: 211-212).

        Tarkovski, um realizador de filmes, estabelece uma distinção que poderia, em um primeiro olhar, inviabilizar um estudo como este, que procura localizar a música num texto literário. Ao afirmar que a literatura, ao contrário da música e do cinema, é uma arte “onde tudo é expresso através da linguagem, um sistema de signos”, Tarkovski sublinha o caráter imediato da música, arte em que não há signo porque não há significado, não havendo, portanto, a dupla face estabelecida por Ferdinand de Saussure. Mas é, sim, possível, graças à mesma imediação que faz parte da natureza da música, lidar com essa linguagem de maneira a lhe conferir, senão um significado arbitrariamente definido, um sentido: toda audição é construtora, e é como se a música apresentasse um tipo muito peculiar de metáfora a seu receptor, pois, não havendo signo, os sentidos se constroem de modo enviesado, bastante comparável ao modo como as metáforas se fazem significar, por aproximação de sentidos. Como as metáforas desfrutam de uma liberdade que os conceitos não podem ter (razão pela qual Nietzsche nomeou de “transposições metafóricas” o trabalho dos primeiros filósofos, os pré-socráticos, mistos de racionalistas, poetas e, no caso dos pitagóricos, musicólogos), é possível que o ouvinte de música perceba cada seqüência de notas que ouve como uma cadeia significante e nela encontre, mesmo que em um nível bastante particular, um significado.
        Antes de mais, Llansol é uma ouvinte de música, deslumbrada e curiosa a ponto de questionar: “A Arte musical, o que é?” (Llansol, 1988: 115). Ao contrário de uma escritora que bebe na fonte llansolniana, a musicista Mafalda Ivo Cruz, a autora aqui protagonista não domina a teoria da música, como admite em Um Falcão no punho: “Escrever de um músico, exige um trabalho de identificação na parte mais funda de sua harmonia; para quem não conheça música – e é o meu caso (...)” (Llansol, 1988: 86). Conhecer música teoricamente, entretanto, é um requisito fundamental para aquele que executa, o músico, ou para aquele que ensina, o professor, não para o compositor; fazer música não exige do autor, necessariamente, domínio teórico dessa arte. Isso sugere que a expressão portuguesa “fazer música” diz mais desse trabalho do que a expressão inglesa “write a song”, o mesmo ocorrendo com o português “compositor” em comparação com o inglês “songwriter”: essas expressões inglesas pressupõem que o autor da música esteja diante de uma pauta no momento da escrita, pressuposto inexistente nas expressões portuguesas, mais reveladoras da possibilidade da autoria musical não teórica. Em contrapartida, as expressões inglesas associam, de maneira bastante sugestiva, a escrita com a composição musical, e promovem uma aproximação (não há ingenuidade na(s) língua(s)) entre escritor e compositor de música.
        A música na literatura de Maria Gabriela Llansol aparece, de maneira bastante explícita, na presença constante de um nome-obsessão: Bach. Transformando esse nome em seu personagem, Llansol resgata toda a carga de evocação que ele possui. Bach, em Um Falcão no punho, é presença de salvação:

Em Leipzig, corriam já rumores.
Comecei a ler os textos em que se tinha manifestado, e resultou uma grande hesitação em romper a Baixa que nos envolvia.

“Herr Bach, venho pedir-lhe que nos ajude a saldar essa dívida”,
disse Aossê.

O senhor Bach inclinou-se,
e eu não sabia se prosseguir
seria um verdadeiro êxito,
ou um descalabro.

Apesar do difícil
confronto
entre Lisboa e Leipzig,
sigo (Llansol, 1998: 88-89).

        Seguir é admitir uma condição, nesse caso a de transportar o peso da arte como um fardo benigno, uma benção. O mesmo medo da “impostura da língua”, desafiado por Llansol ao se pôr no próprio texto como uma pessoa (mais que apenas um personagem), aparece nesse quase poema citado. O encontro de Aossê (Pessoa) com Bach – e o artista barroco passará a ser mestre do moderno a partir desse encontro – revela a fraternidade entre literatura e música que Tarkovski nega e que o idioma inglês sugere com seu “songwriter”. E “o martírio de prosseguir” (Hatherly, 1991: 51) – verso final de um dos rilkeanos poemas de Ana Hatherly – acaba por aproximar Bach a Beethoven, sobretudo à anotação que o compositor clássico fez ao final da partitura de seu Quarteto op. 135: segundo Wisnik, “no derradeiro movimento do derradeiro quarteto, Beethoven inscreveu a epígrafe poético-musical que se faz acompanhar de um motivo melódico espelhado: ‘É preciso? É preciso’” (Wisnik, 2001: 147); prosseguir é preciso, como o é fazer navegar o próprio Pessoa, transformando-o em outro, Aossê, diverso, desta vez, dos demais outros pessoanos. E essa navegação, esse deslizamento do nome primeiro do poeta para um nome novo, realiza um movimento bastante similar ao da música: afirmou Hegel que “numa obra musical, um tema, à medida que se desenvolve, faz nascer um outro, e assim ambos se sucedem, se encadeiam se possuem mutuamente, se transformam...” (Apud Wisnik, 2001: 152): transformado o nome pessoano, e essa transformação tendo sido possível dado o desenvolvimento desse nome não apenas na história da literatura, mas também no contexto particular de Um Falcão no punho, constrói-se, bem à maneira da música, Aossê.
        Mas a presença de Bach é apenas uma pista da musicalidade dos textos de Llansol, mais música na sua estrutura formal que nos seus dizeres. Pode-se começar a ver o que há de música nas obras llansolnianas a partir da pouca dedicação de suas narrativas ao ofício mesmo de narrar. As narrativas tradicionais dedicam-se fundamentalmente a estórias e, para isso, não podem se afastar em demasia dos significados consagrados pelo uso; por mais que possam tentar subverter esses significados, as narrativas, caso não respeitem, pelo menos até certo ponto, aquilo que a arbitrariedade do idioma determina, correm o risco de se tornar textos ilegíveis, impenetráveis, portanto não narrativos. Não é despropositado reafirmar que a narrativa, ao se propor contar uma estória, lida com o significado de maneira, necessariamente, menos livre que uma obra como a de Llansol. Obra essa que acaba por se aproximar do cinema e da música pela sua, a partir de um termo usado por Tarkovski, imediação. Não é casual que Llansol tenha escrito um texto elegíaco a uma obra cinematográfica, A Festa de Babette:

Não posso recordar-me dessa ceia sem cair absorta: é uma assimilação superior a mim, que rouba até a visibilidade da minha presença; julgo-me oculta no lugar mais obscuro da luz do fogão que é o espelho humano de uma estrela: ______________ que posso eu dizer-vos que não quebre a incomunicabilidade das palavras de amor?
(...)
Como perder as páginas que ardem na lareira desta cozinha luminosa e oscilante? (Llansol, 1990: 49).

        É tão sem mediação a aproximação de Llansol a essa cena do filme de Gabriel Axel como o é a audição da música. Claro está que a música e o cinema, como afirmou Tarkovski, não são artes sígnicas, mas uma literatura como a de Llansol, na qual os significados são refeitos a todo instante, na qual a expectativa do leitor que prevê o texto tradicional é tão frustrada, na qual o sentido é tão ou mais do leitor como do próprio texto, está muito mais perto do cinema e da música do que – pode-se ousar afirmar – nunca se esteve antes, pelo menos no universo da literatura portuguesa. Evidentemente, a aproximação da literatura a outras linguagens é uma prática de outros escritores como, por exemplo, Herberto Helder, autor de um sintagma provocativo em sua aparente arbitrariedade: “qualquer poema é um filme” (Helder, 1995: 148); muitos, como Jorge Fernandes da Silveira, viram poesia em Llansol: “O que há nesses textos, com certeza, é um modo lírico de estar na linguagem, de compreender e conceber a escrita” (Silveira, 1993: 97): Llansol, portanto, é poeta, e “qualquer” de seus poemas “é um filme”, poderia dizer Herberto Helder. Entretanto, mesmo uma obra devastadora como a do fazedor da Poesia toda tem menos imediação que a llansolniana, pois a poesia herbertiana é plena de uma simbologia hermética (fala-se, claro, de Hermes) e ambígua, permitida apenas à literatura, o que faz com que, mesmo suas aproximações a outras linguagens artísticas sejam, elas mesmas, literariamente simbólicas.
        Essa ausência de significados estanques (os significados na obra de Llansol se aproximam da possível “cadeia de significante” que o ouvinte de música pode absorver do que lhe chega) leva a literatura de Llansol a não obedecer a uma seqüência narrativa convencional. Não há os tradicionais começo, meio e fim que comparecem na literatura de ficção, mesmo na que subverte a linearidade e exige que o leitor ordene a temporalidade, ainda que existam datas em seqüência em Um Falcão no punho, por exemplo. Se não há essa seqüência ordenada de acontecimentos e eventos, há, ao longo de seus textos, aquilo que Llansol denomina “cenas fulgor”. Sua maneira de estar na literatura, o romance, é bastante bem explicitada por ela mesma ao falar dos lugares e paisagens “para” onde quer ir sua escrita:

____________ escrevo, para que o romance não morra.
Escrevo, para que continue,
mesmo se, para tal, tenha de mudar de forma,
mesmo que se chegue a duvidar se ainda é ele,
mesmo que o faça atravessar territórios desconhecidos,
mesmo que o leve a contemplar paisagens que lhe são tão
difíceis de nomear (Llansol, 1994: 116).

        Ao propor um romance tão novo que irreconhecível, Llansol admite a dificuldade de nomear que surgirá com um romance assim. Esse aspecto de sua literatura a aproxima ainda mais da música, cuja própria natureza é radicalmente avessa à nomeação: a música não tem nomes, e todo o discurso da musicologia é feito por arbitrariedades de nomenclatura, que mimetizam, para que possam dizer, outros universos; exemplos disso são os nomes que se dão aos movimentos das sinfonias: “andante” é aquele que anda, e usa-se esse termo para definir um movimento não tão alegre, não tão triste; mas a música não anda, e definições como essa são apenas “transposições metafóricas” para nomear o inominável. Ademais, não se pode negar a dificuldade de se explicar o mecanismo de recepção da música, o porquê de ela comover ou extasiar o ouvinte. Em um admirável texto, o musicista Robert Jourdain tenta detectar o que torna a audição da música uma experiência tão decisivamente bela:

(...) a música, e a arte em geral, proporcionam à mente experiência cuidadosamente ordenada – um amanhecer perfeito para sempre. No cotidiano, um cérebro faz o melhor que pode para entender um mundo desordenado. Ele facilmente encontra as relações mais superficiais entre os objetos com que se depara. Mas o cérebro não encontra com freqüência relações profundas e imaculadas no mundo em torno, pelo simples motivo de que existem poucas prontamente percebidas. O mundo é confuso demais...
(...)
É por esse motivo que a música pode ser transcendente. Durante alguns momentos, ela nos torna maiores do que realmente somos, e ao mundo, mais ordenado do que ele realmente é (Jourdain, 1998: 414- 416).

        A afirmação de Jourdain de que a música “nos torna maiores do que realmente somos” se aproxima bastante da sensação de Llansol ao ver A Festa de Babette, “uma assimilação superior a mim”. A literatura de Llansol se torna gêmea da música, em especial da erudita, ao apresentar aquilo que Jourdain chama de “relações profundas”, em detrimento das “relações superficiais”. No universo musical, relações profundas são o que torna possível a simultaneidade de várias notas; uma orquestra, por exemplo, não toca apenas a melodia principal, pois várias frases musicais são executadas em simultâneo, e há instrumentos que executam a estrutura da música, a harmonia. Trazendo esses traços para a literatura, pode-se considerar que relações superficiais são as imediatas, da ordem da continuidade, que caracterizam a narrativa tradicional, ou seja, a mera causalidade. Relações profundas seriam o que se encontra na literatura de Llansol, na qual não existe a mera causalidade das relações superficiais. Exemplos dessas llansolnianas relações profundas não faltam: a relação entre o humano e o não-humano, porém vital (o que anuncia como uma sinfonia do vitalismo), a relação entre Bach e Pessoa, a relação entre Lisboa, Leipzig e etc. Entretanto, o mais notável desse aspecto da literatura de Llansol está na sua estrutura, na sua forma: a relação entre os textos, algo que se pode chamar intratextualidade, extrapola esse conceito literário por estar mais além dos significados recorrentes. Um claro exemplo disso é a aparição da idéia de animalidade em dois textos diferentes:

“Rodeada de vegetais, de bichos – a parte lateral da humanidade –, sinto a secreção interna desse estado de viver, análogo ao espaço e à duração. Herbais não oculta Portugal, e trouxe dele uma nova figura para Lisboaleipzig, chamada Infausta” (Llansol, 1988: 136).

        Esse fragmento de Um Falcão no punho eleva dos bichos, parte da “parte lateral da humanidade” – talvez as trompas da sinfonia vida –, seu caráter mais vital. Em contrapartida, os mesmos animais significam outra coisa em um fragmento de Um Beijo dado mais tarde:

“Não falei da luz da vela acesa, que a princípio estava à altura do rosto de Ana, e que só agora chega à altura do rosto de Myriam. Myriam de rosto rosado, e de corpo de luz, deve ter alguma correspondência com o corpo animal, pois se estende através dele a linha de conservação do ser” (Llansol, 1990: 55).

        Aqui, o animal é extensão do corpo da personagem Myriam, aprendiz de leitura. Animal, significante, pode ser “anima”, parte, por excelência, do vitalismo, anterior ao raciocínio e, portanto, capaz de ouvir a música. A essas relações profundas, a essa harmonia subjacente às melodias llansolnianas, poderia ser aplicado o que Jourdain chama de “experiência cuidadosamente ordenada”; claro está que ordem, nesse caso, não é a que se construiu a partir das categoriais da cultura, mas outra, anímica como “a linha de conservação do ser” que une Myriam e “o corpo animal”: trata-se, mais uma vez, da estrutura formal que organiza os textos de Llansol, o que há nesta literatura de mais próximo da música. A propósito, falou-se de metáfora neste estudo; cumpre ressaltar, contudo, que a literatura de Llansol recusa essa figura, mas não se afasta da prática que Nietzsche chamou de “transposições metafóricas”:

Interrompo aqui o texto porque desliza para a metáfora. Queria desfazer o nó que liga, na literatura portuguesa, a água e os seus maiores textos. Mas esse nó é muito forte, um paradigma frontalmente inatacável (Llansol, 1988: 32).

        Do mesmo modo como os animais são “a parte lateral da humanidade”, é de modo lateral que se enfrentará o “nó” aquoso da literatura portuguesa: se não a metáfora, transposições, afastamento dos significados: talvez se chegue ao rompimento desse nó fazendo-se música: um dos notáveis casos de um, parafraseando Jorge Fernandes da Silveira, “modo” musical de Llansol “estar na linguagem” é a presença do itálico e do negrito em seus textos:

este dia começou pelas suas últimas linhas pois, em qualquer janela, está frio,
e eu sinto-me sozinha na casa dos objectos, deixada vazia pela Morte Sucessiva dos Vivos.
Próximo, alguns livros, um galo, o retrato de um rosto feliz de expressão luminosa, e a ária nostálgica de um objeto perdido. Estou pensando no que Ana definia por nostalgia, (Llansol, 1990: 54)

        O caso do itálico, aqui, remete ao que na música erudita se chama fortíssimo, ou seja, uma subida de volume que define o momento forte da música. Llansol faz de suas cenas fulgor os fortíssimos de seus textos. O que torna ainda mais próximos esses destaques fulgurantes que figuram na literatura de Llansol dos fortíssimos da música é o fato de que, do mesmo modo que não são notas ou acordes especiais que caracterizam os momentos-cume das peças, não são termos raros ou inusuais que se destacam nos textos de Llansol. O negrito tem basicamente a mesma função nesses textos:

Estes lugares, fontes de inebriamento, eram também lugares centrais do seu medo. A essa casa, e à imagem captativa da mãe, unindo-as, eu sempre chamei castelo nodal do medo (Llansol, 1990: 71).

        Sendo de inegável semelhança a fala humana e a música, dada a presença, nos dois fenômenos, do som, pode-se supor que um leitor, ao ler em voz alta um fragmento como o recém-citado, tendesse a ler as expressões em negrito, como também as em itálico, em um tom de voz mais forte. O acréscimo de volume é, justamente, o que acontece nos fortíssimos da música. Além do mais, os termos destacados na literatura de Llansol, apesar de não serem de natureza diversa dos demais, de certo modo encerram as temáticas decisivas que são expostas, concentrando em si o lugar do maior fulgor, resultado de um olhar visceralmente atento àquilo que promove a reunião dos seres; nas orquestras, ao ser executado um fortíssimo, todos os instrumentos participam, promovendo a mais total reunião de todos os partícipes do concerto. Da mesma forma, os tons dos momentos fortes das peças geralmente estão em profundo acordo com seu centro tonal mais básico, o que se põe ao lado das cenas fulgor de Llansol, que são como um retorno à unidade vital que se perde pela cultura. Essa perda da unidade primordial (na música, o primeiro centro tonal), se torna explícita na epígrafe ao texto “E que não escrevia”, presente em Depois os pregos na erva: “(auto-análise: “não sou capaz de dar vida a uma sociedade nova. Mas posso destruir os mortos”)” (Llansol, 1973: 5). “Destruir os mortos” é como que recuperar uma unidade primordial, criando não uma “sociedade nova”, mas uma sociedade primeira, primeva: é como que um retorno ao centro tonal, àquilo que gerou a música em seu princípio.
        Outro traço importante que musicaliza a literatura de Llansol é o ____________, o que há de mais remissivo à pauta da música nessa obra. Se lembra a poesia concreta em um primeiro momento, um olhar mais atento percebe que os experimentos gráficos no concretismo se propunham algum significado, enquanto aqui não se pode depreender significado nenhum, pois o __________ não se apresenta como significante. Um exemplo notável do uso desse recurso está em Um Beijo dado mais tarde:

a imagem incrusta-se na pedra ___________ e constrói a montanha ___________ uma rosa picava o azul das almas ___________ exalando melancolia sobre o amor; de um fio desses sentimentos, eu desci para a terra do caminho que se dirigia à cidade; uma poeira lúcida fazia de lâmpada sobre a mesa (Llansol, 1990: 74).

        É interessante observar que o ___________ não substitui nenhum termo que se poderia pressupor no texto caso o ___________ lá não estivesse: a oração “e constrói a montanha”, que vem logo após um ___________, completa perfeitamente “a imagem incrusta-se na pedra”. Isso significa que o ____________ não é um recurso para criar mistério, exigindo do leitor uma qualquer decifração. Ao não exercer nenhuma função significativa aparente, como a música nada significa por não ser um sistema de signos, pode-se deduzir que existe, nesses casos, uma suspensão da própria leitura, carregando o leitor de expectativa e relaxando-o na medida em que surge uma nova palavra e o texto volta a ser o que era, ou seja, um texto. Esse recurso se aproxima de uma das características da música tonal, a tensão: ao se afastar do centro tonal da música, cria-se o que na terminologia musical denomina-se tensão; após isso, volta-se ao tom, chamado repouso. Já se afirmou aqui que a musicologia vive de metáforas, impossibilitadas as palavras de nomear cabalmente o que a elas não se presta; portanto, ainda que exista um repouso, no sentido musicológico, após os _________ llansolnianos, este termo da música não deve ser entendido como comumente se o pode entender, pois não é repousante, pelo menos não no sentido de aplacação do inquieto exercício da leitura, a literatura de Llansol.         É possível também fazer uma analogia entre os ___________ de Llansol e o silêncio, uma das buscas da prática poética: o aqui já citado Herberto Helder é um bom exemplo da busca da poesia pelo silêncio: “Como o centro da frase é o silêncio e o centro desse silêncio/ é a nascente da frase começo a pensar em tudo de vários modos –” (Helder, 1996: 347). Parte, portanto, do silêncio a poesia, e a ele quer chegar: um _________ no meio do texto, em meio a palavras, cala o próprio texto e permite, de maneira radical, a chegada desse silêncio tão ambicionado, e “tudo” se pode “pensar” “de vários modos”, pois o leitor recebe a tarefa de realizar, ele mesmo, sua “transposição metafórica” a partir da ausência de significado lingüístico. Ademais, a própria música quer o silêncio pois quer calar o que há ao redor de si para se fazer ouvir; assim se faz ver a rapariga goesa de Sophia de Mello Breyner Andresen: “Uma rapariga descalça como bailarina sagrada/ Atravessou o quarto leve e lenta/ num silêncio de guitarra dedilhada” (Andresen, 1998: 22): nada se ouve ou vê além da “rapariga descalça” e do som que ela faz acontecer no “quarto”, assim como nada se ouve ou vê além do __________ llansolniano que silencia o próprio texto, livrando-o daquilo que o poderia contaminar desde fora dele, desde uma literatura carregada de ruídos de convencionalidade. Por isso é também notável um outro silêncio, desta vez sugerido apenas por um espaço branco deixado na página, em Um Falcão no punho:

Decido, nessa altura natalícia, tirar o d de deus e chamar eus ao que for a diferença que o prive de ser a sua vontade
(...)
As três concebemos nitidamente os dias com as noites, e os dias com sua noite. Atentas à razão, partilhamos o que nos foi trazido: Engrácia fica com a escrita, a criança com eus, eu fico aqui. (Llansol, 1988: 17).

        Mais itálicos, fortes, mas negritos, fortíssimos. Há espaço branco na página, não há sequer _________ , apenas o silêncio que advém, por certo, de uma epifania: “eus” é a diferença do Nome, mas é também o indivíduo – e, no caso da literatura de Llansol, sempre se narra em primeira pessoa, o que permite que se veja o texto como reconstrução do próprio autor – que se pluraliza. Antes da pluralização, um espaço, respiração e silêncio, ar nos pulmões para que se possa prosseguir, com mais iluminação que antes, com o canto. O espaço também propõe união, pois “os dias com as noites” completa, após um espaço, “concebemos nitidamente”: após a epifania, a concepção se faz possível.
        Além disso, pode-se pensar, a partir do ____________ e do espaço em branco, na música indiana, que tem no silêncio um de seus traços efetivamente constitutivos. Mas, como afirmou Robert Jourdain, “como sempre, somos capazes de perceber apenas os tipos de relações que nossa cultura musical particular instilou” (Jourdain, 1998: 415). Portanto, nesse caso, sair do ocidente é um risco que se aproxima da leviandade: por isso Leipzig e não Bagdá: “A pedra deste túmulo não a consigo demover. Não será Lisboa-Bagdad, mas tão só Lisboa-Leipzig” (Llansol, 1988: 98).

3. Coda:

        Este foi um olhar, que venham outros. Em contato com uma literatura tão vasta, tão possível, tão viva, vários olhares se podem construir, e nenhum será o definitivo. Cabe ao leitor-crítico a tarefa de absorver de textos assim seu vitalismo, e construir uma outra escrita que não se amarre ao velho, porque o velho não pode dar conta de Llansol, destruidora de mortos e fazedora de fulgor. Da sinfonia poética llansolniana, muito mais se pode dizer, e muito bem já disse Eduardo Prado Coelho, por exemplo, ao afirmar:

A linha divisória é outra: entre a finitude dos seres e a substância infinita de que essa finitude é feita.
O que há de mais fascinante na escrita de Maria Gabriela Llansol é o modo como nos restitui (na medida exacta em que a escrita é apenas um efeito daquilo mesmo que reproduz) a pulsação incessante dessa substância infinita que se dobra, requebra, empolga, desmaia, declina, evapora, gramaticaliza, exalta, duplica ou expõe, segundo nós de intensidade e paixão que excedem toda a compostura social das palavras ou toda a ordenação convencional da realidade (Coelho, 1997: 259).

        Prado Coelho aproxima-se do ritmo da música em seu ensaio, e sublinha a desobediência e a paixão, a palavra resignificada e pouco socializável, e aqui, claro, social é escrito em ser sentido mais pobre: e aponta o ensaísta para uma restituição, um nobre presentear de algo que nos foi roubado por um mundo mau, feito não só de injustiças, mas também de literatura acomodada, morta.
        Desse mundo em desconcerto surge um algo novo, uma existência fulgurante, um concerto mesmo.

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ANDRESEN, S. M. B. O Búzio de cós e outros poemas. 2. ed. Lisboa: Caminho, 1998.

COELHO, E. P.O Cálculo das sombras. Porto: Asa, 1997.

CRUZ, M. I. A Casa do diabo. Lisboa: Dom Quixote, 2000.

HATHERLY, A. Rilkeana. Lisboa: Assírio & Alvim, 1999.

HELDER, H. Photomaton & Vox. 3. ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 1995.

_____ Poesia toda. Lisboa: Assírio & Alvim, 1996.

JOURDAIN, R. Música, cérebro e êxtase. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998.

LLANSOL, M. G. Um Beijo dado mais tarde. Lisboa: Rolim, 1990.

_____ Depois de os pregos na erva. Porto: Afrontamento, 1973.

______ Um Falcão no punho. 2. ed. Lisboa: Relógio D’Água, 1988.

______ Lisboaleipzig 1- O Encontro inesperado do diverso. Lisboa: Rolim, 1994.

LOURENÇO, E. O Canto do signo. Lisboa: Presença, 1993.

NIETZSCHE, F. A Origem da tragédia. São Paulo: Moraes, s/d.

SENA, J. Trinta anos de poesia. Lisboa: Edições 70, 1984.

SILVEIRA, J. F. A Crise dos gêneros e a ficção lírica de Maria Gabriela Llansol. Revista Letra, 4: 96-101, 1993.

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